terça-feira, 28 de setembro de 2010

DOIS DOS PRINCIPAIS ARTISTAS QUE PARTICIPARAM DA SEMANA DE ARTES MODERNAS

VIDA DO ESCRITOR FOI UM "VULCÃO DE COMPLICAÇÕES"

Mário de Andrade era um mistério. Ele próprio ajudou a construir essa imagem. "Eu sou trezentos... sou trazentos-e-cinquenta", escreveu no "Remate de Males" (1930). O verso até agora serviu para interpretar suas múltiplas atividades, de poeta a etnógrafo. Mas um exame mais detalhado de sua correspondência e de suas amizades revela que o homem era mais do que 350, às vezes era 351, como o próprio Mário corrigiu em carta à poeta mineira Henriqueta Lisboa: o 351° era o "indivíduo infame, diabólico, que eu carrego toda a vida comigo". Não foi a única vez que Mário se referiu a essa sina. A José Bento Ferraz, seu secretário particular entre 1934 e 1945, costumava dizer: "Há um lado hediondo no meu caráter". Aos 80 anos, José Bento diz: "Eu não acho que o Mário tenha algum lado hediondo em seu caráter".

Não se sabe por quê, mas foi esse o dogma que ficou na história do modernismo. Enquanto Oswald de Andrade era o devasso, o piadista, Mário era o "scholar", o erudito, o monumento moral, imagem que incomodava o próprio escritor: "Me vejo convertido a erudito respeitável e, o que é pior, respeitado. Isso me queima de vergonha", escreveu em 1942 ao jornalista e crítico Moacir Werneck de Castro.

De santo e erudito, Mário até tinha muito. Nascido numa família católica, foi congregado mariano, ia à missa todos os domingos até o final dos anos 20, carregava vela em procissão e cantava no coro da Igreja Santa Ifigênia, no centro de São Paulo. Mesmo se afastando da igreja, conservou-se cristão até a morte, em 1945. Sua erudição pode ser medida pela extensão e variedade de sua obra (58 livros, entre poesia, ficção, ensaio e correspondência) e pelo tamanho de sua biblioteca (17 mil volumes, principalmente de música, arte, literatura, etnologia e folclore).

Mas Mário não era só santo e erudito. Sob o clichê sacralizado se esconde um "vulcão de complicações", segundo autodefinição de 1925. Era vaidoso, sensual, gostava de tomar seus porres, experimentava drogas "com um interesse apaixonado" e dizia ter uma "espécie de pansexualismo". Só usava ternos de casimira inglesa ou linho branco S-120. Em casa andava de robe de seda (alguns desenhados por ele).

Mandava seu secretário comprar a loção francesa Rêve Rose para passar na careca, usava pó-de-arroz na face para atenuar o tom amulatado da pele, herança das avós materna e paterna, ambas mulatas. Porres e experiência com drogas Mário reservava principalmente para as viagens. No Carnaval de 1929, na sua segunda viagem ao Nordeste (a primeira foi entre 1927 e 1928), cheirou éter e cocaína "loucamente" com seus amigos de Recife, entre os quais o pintor Cícero Dias e o escritor Ascenso Ferreira. "Passei a noite sob efeitos reprovocados de coca e éter, uma luxúria até 6 da manhã", conta em "O Turista Aprendiz". Radicado em Paris desde 1937, Cícero Dias. 85, diz hoje que há um "certo exagero" sobre a cocaína: "Usava-se mais porre de éter".

Foi no Rio, onde viveu de julho de 1938 a fevereiro de 1941, trabalhando no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que Mário se "desmandou" na bebida, como diz seu secretário Bento. Foi a primeira e única vez que morou fora de São Paulo, de onde saiu depois de chefiar três anos o Departamento de Cultura. Os pileques de choque eram na Taberna da Glória, onde se reunia com Carlos Lacerda, Moacir Werneck de Castro, Murilo Miranda e Lúcio Rangel. Apesar de Mário dizer que chegou a perder três vezes a consciência, Maria Amélia Buarque de Holanda, 83, viúva do historiador Sérgio Buarque de Holanda, recorda que "ele bebia forte mas não era dos mais porristas". Quando Paris foi ocupada pelos alemães, em junho de 1940, Mário e Sérgio esvaziaram uma garrafa de uísque.

A pista sobre o Mário sensual foi dada pelo próprio: "Há também um outro elemento, delicado de tratar, mas que tem uma importância decisória em minha formação: a minha assombrosa, quase absurda - o Paulo Prado já chamou de 'monstruosa' - sensualidade", escreveu à musicóloga Oneyda Alvarenga em 1940. Essa sensualidade se dirigia a objetos (sobretudo livros e obras de arte), à natureza ("descobri que seria capaz de ter relações sexuais com uma árvore!", contou ao escritor Rosário Fusco em carta de 1934) e a seres humanos de ambos os sexos.

Aí, em torno de sexualidade de Mário de Andrade, esbarra-se no tabu dos tabus. Quase 50 anos depois da morte do escritor, um único libro aborda, embora timidamente, sua homossexualidade: "Mário de Andrade - Exílio no Rio", de Moacir Werneck de Castro. O autor parte das análises literárias de João Luiz Tafetá (no livro "Figuração da Intimidade — Imagens na Poesia de Mário de Andrade") e da correspondência do escritor para concluir que "na raiz do drama existencial de Mário de Andrade jaz a angústia da sexualidade reprimida e transformada em difusa pansexualidade".

Hoje com 78 anos, Werneck lembra que na sua roda de amigos não se suspeitava que Mário pudesse ser homossexual. "Supúnhamos que fosse casto ou que tivesse amores secretos. Se era ou não isso não afeta sua obra, nem seu caráter". A dúvida é tão antiga quanto o modernismo. Já em 1923, Mário comentava sua fama de "pederasta" em carta a Sérgio Miliet: "Já sabia da reputação. Não me surpreendeu. Será a celebridade que se aproxima? Eis-me elevado à turva e apetitosa dúvida que doira a reputação de Rimbaud, Verlaine, Shakespeare, Miguel Anjo, Da Vinci". Em 1929, quando rompe com o escritor Oswald de Andrade, a dúvida cresce mais ainda, impulsionada pelo que o ensaísta Antonio Candido chamou de "piadas sangrentas" de Oswald. Uma delas: Mário é "muito parecido pelas costas com Oscar Wilde".

A curiosidade é estimulada por um pedido de Mário: as cartas que recebeu, hoje trancadas em cofre no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, só podem ser abertas em 25 de fevereiro de 1995, 50 anos após sua morte. Uma carta do próprio Mário ao poeta Manuel Bandeira também está vetada até 1995. O mistério está guardado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio. Só em 1990 Antonio Candido, que conviveu com os dois Andrades, tocou de forma mais direta no assunto: "O Mário de Andrade era um caso muito complicado, era um bissexual, provavelmente", afirmou em depoimento ao Museu da Imagem e do Som de São Paulo. "Os únicos casos concretos que a gente tem sobre a vida afetiva dele são casos com mulheres que a gente sabe quais foram. Ele tinha uma sensibilidade de homossexual, isto é fora de dúvida, vê-se pela obra dele".

Mário diz no poema "Girassol da Madrugada" que teve quatro "amores eternos": "O primeiro era a moça donzela,/ O segundo ...eclipse, boi que fala, cataclisma,/ O terceiro era a rica senhora,/ O quarto és tu...", O "tu" era R.G., a quem o poema é dedicado. Mário revelou seu nome completo a Manuel Bandeira, que teve o cuidado de suprimi-lo quando o publicou em 1958 as cartas que Mário lhe mandara.

Dos outros amores sabe-se que "a rica senhora" é Carolina Penteado da Silva Telles, filha de Olívia Guedes Penteado. Durante dez anos, de 1924 a 1934, Mário frequentou os saraus no casarão de Olívia e via Carolina quase semanalmente, casada com Gofredo Teixeira da Silva Telles. "Ele sempre foi muito cavalheiro, muito respeitoso, uma pessoa corretíssima", lembra Carolina hoje com 99 anos, "Só fui saber que eu era a paixão da vida dele quando a Tarsila me contou na missa de sétimo dia de Mário. Eu nunca soube de nada".

Tarsila, a pintora Tarsila do Amaral, foi outro amor platônico de Mário nos tempos heróicos do modernismo, época em que era casada com Oswald. O episódio Carolina ilustra como Mário era "um homem difícil, que só lentamente rompia suas barreiras defensivas", como escreveu o crítico Mário da Silva Brito. Embora sempre cercado de amigos, parentes e administradores, o próprio escritor parecia condenar-se a uma solidão sem remédio. Na última carta que escreveu à pintora Anita Malfatti, em 26 de julho de 1939, confessou: "Ninguém poderia chegar a gostar inteiramente de mim, porque com meu jeitão feiúdo e a forma pouco esperta e ácida do meu espírito não dou bem-estar a ninguém".

O represamento afetivo, não raro, virava tormenta. Foi no período que viveu no Rio que seus dilemas se intensificaram. Acima de tudo, Mário se atormentava com a distância da mãe, Maria Luísa, com quem morou até a morte: "Estou literalmente desesperado, não aguento mais esta vida do Rio, e ou acabo comigo ou não sei. Às vezes sinto que a única salvação é voltar pra S. Paulo de uma vez. Lá eu tenho de perto a imagem de minha mãe, que de longe não é suficientemente forte pra vencer meus desesperos", queixava-se a Paulo Duarte em 1939.

Havia também a Guerra. Embora nunca tenha ido à Europa (só saiu do Brasil uma vez, em 1927, quando foi ao Peru), lamentava a destruição de bens culturais e valores que prezava. Por tudo isso, Mário se dilacerava em, dúvidas: não sabia se devia se dedicar exclusivamente à ficção, à pesquisa mais erudita ou à participação direta na vida política (vivia-se a ditadura de Vargas).

Em 1942, quando já voltara a São Paulo, as dúvidas transformam-se em "mea culpa", uma espécie de autoflagelação intelectual. Na conferência sobre os 20 anos do modernismo, faz ataques ao movimento ("era nitidamente aristocrático") e considerava-se pessoalmente um fracassado: "Tendo deformado toda minha obra por um antiindividualismo dirigido e voluntarioso, toda a minha obra não é mais que um hiperindividualismo implacável. É melancólico chegar assim no crepúsculo sem contar com a solidariedade de si mesmo". Tinha 48 anos à época. Vivia se queixando de doenças e da falta de dinheiro.

O poeta Carlos Drummond de Andrade reuniu trechos de 114 cartas a vários destinatários nas quais Mário descreve seus males —úlcera, hemorróidas, sinusite, enxaqueca, dores nos rins, colite, gripes frequentes, estafas e depressões nervosas. Debochava das doenças, vivia prevendo que morreria aos 50 ou 55 anos e chegou a escrever a Paulo Duarte em 1942; "Estou me suicidando aos poucos". Morreu a 25 de fevereiro de 1945 de infarto, aos 51 anos. Dois anos antes, admitia "melancólico"
suas vaidades: "Sou bastante artista, pelo menos até o ponto de desejar essa besteira
inacreditável e inexplicável de continuar querido depois de cadáver, osso, pó filho da puta".




ANITA MALFATI

Anita Malfatti nasceu em São Paulo em 1889.

Após iniciar-se na pintura com a mãe, foi para a Europa em 1910. Aí estudou na Academia Real de Belas-Artes de Berlim, teve aulas particulares e tomou contato com o expressionismo alemão. De volta ao Brasil em 1914, fez uma pequena exposição. Viajou em seguida para Nova Iorque, onde freqüentou a Art Students League e a Independent School of Art em 1915-16.

Em dezembro de 1917 realizou em São Paulo polêmica exposição, considerada a primeira mostra de arte moderna no Brasil. Em contraposição às fortes críticas de Monteiro Lobato, recebeu o apoio de Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Menotti del Picchia, que saíram em sua defesa, bem como dos princípios da arte moderna. Em torno de seu nome formou-se o grupo de intelectuais e artistas que iria organizar a Semana de Arte Moderna de 1922, da qual participou, expondo 20 obras. Em 1923 seguiu para a França com bolsa de estudos do governo paulista e aí permaneceu até 1928.

Em 1951 participou da I Bienal de São Paulo. Doze anos depois, a direção da mostra reservou uma sala para a exposição de 45 trabalhos de sua autoria.

Faleceu em São Paulo, em 1964. Desde então sua obra vem sendo mostrada em inúmeras exposições, no Brasil e no exterior. Entre seus quadros mais famosos, destacam-se A estudante, Tropical, O homem amarelo e O japonês.

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